Ricardo Marques

Atenas torna-se Alexandria

Por: Crônica | Publicado: 17/05/2024 08:11 - 0 comentário


Compartilhe:


 

POR HUMBERTO CAMPOS DE ALCÂNTARA

Imagine a seguinte cena: Felipe Camarão, o vice-governador do Maranhão e Secretário de Educação, é um jovem sonhador, com ideias altamente progressistas. Tem uma avó, Jean Moses Camarão, professora da UFMA, com ideias lúcidas sobre livros, formação de professores, entre outros aspectos. Esse jovem, que diversas vezes visita a sala da docente, no antigo Centro de Estudos Básicos, no Campus do Bacanga, com a sua magnífica biblioteca, com os livros doados pela avó, tem a primeira lição, de tantas que terá até chegar à idade adulta: os livros são como um portal para a entrada num mundo muito melhor. Quem penetra neles, através da leitura, descobre muitas vezes o sentido da vida, os caminhos que deve seguir etc. Então... ainda jovem, o dito Felipe assiste, talvez por recomendação de algum professor ou do pai, ou da avó, ao filme O Nome da Rosa, filme dirigido por Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery, baseado no romance homônimo do italiano Umberto Eco. Ao final, com a biblioteca em chamas, simbolizando Alexandria, com os seus milhares de livros, incluindo, segundo consta, o livro 2 da Poética de Aristóteles, destruídos para sempre, o jovem lança no rosto gotas e mais gotas de lágrimas. Como pode um desastre desse acontecer, então não sabem que o livro, como disse minha avó, é uma coisa sagrada? Triste, o jovem fica pensando. Um dia... nunca vou deixar rasgarem uma só página de um livro. Isso nunca...

O tempo passa. As nuvens mudam sempre. Os homens mudam conforme o tempo. A vida evolui.

2024. Felipe Camarão não é mais jovem. Agora é professor da UFMA, como sua avó foi durante décadas. Além de professor é, como foi referido, vice-governador e Secretário de Educação. Não existe uma biblioteca de Alexandria para o jovem cuidar, mas existe – sob a sua gestão – uma rica biblioteca (a do Centro de Criatividade Odylo Costa, Filho).

Eis que na calada da noite, sem um vigia, sem um leitor, sem ninguém por perto, um sujeito – talvez saído de algum mundo que fingimos não conhecer – entra no fabuloso prédio (do Odylo) e descobre que existem muitas coisas para levar, vender ou trocar por uma pedra de crack. Não coloca fogo, porque assim destruiria tudo. Apenas rouba. Leva uma cadeira, uma mesa, depois livros. Mas os livros os traficantes não querem, porque – para eles – não têm valor... Dois livros não valem uma pedrinha. Querem só o que pode ser aproveitado como produto vendável. Mais uma cadeira é levada. De repente, sem que ninguém grite para apagar as chamas da Alexandria de São Luís, entram mais dois homens – ou pelo menos se parecem como tal – e descobrem outros objetos em salas até então fechadas. Arrombam. Levam o que podem. Como ratos, atrás de comida, aparecem outros restos humanos. E vira uma coisa deliberada. E ninguém vê ou finge que não vê.

Dez da noite, um excluído do sistema social maranhense, entra sozinho na Alexandria. É quase uma tapera. O prédio não é mais nem sombra do que fora um dia. Por sinal, ele se lembra da abertura da Feira do Livro que houve ali. Nauro Machado estava no palco, porque era um dos homenageados. Não tem mais palco. Entra no Teatro Alcione Nazaré. Acende um palito de fósforo. Um vazio se abre diante dos olhos. Nada mais existe por ali. De repente, sai e vai no cinema... Escuridão. Outro fósforo. Vazio. Sente uma dor no ventre. Ele, que é um excremento social das ruas de São Luís, precisa lançar na terra aquilo que o seu organismo não quer mais. Sai, mas está chovendo. Entra novamente no prédio. Procura algo que possa servir de papel. Vai aos banheiros. Acende novo fósforo. Lembra-se de que havia uma biblioteca no prédio. Às escuras, procura e consegue entrar. Com um livro de José Sarney, O Dono do Mar, faz uma pequena tocha. Pega outro livro. Machado de Assis. Título: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Abre uma página. Consegue ler mesmo com pouca luz. “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” Rasga essa página e outras tantas. Joga o livro no chão. Não serve mais. No banheiro do Odylo, sem portas, sem vasos, sem pias, sem torneiras, agacha-se, lança os excrementos. Nas mãos, as páginas arrancadas do romance de Machado de Assis. Este narrador não consegue escrever mais nenhuma frase dentro da Alexandria, que começa a arder em chamas.

Banco em frente ao Odylo. Madrugada. Brisa fresca bate num usuário de drogas, que dorme a sono solto. De repente, a sua expressão muda. Parece estar tendo um pesadelo. Aparece sobre o Odylo um anjo. Tem asas, mas não é anjo. Parece um demônio. É um demônio. Não. Vendo melhor é um vampiro, que vem sugar o sangue dos que dormem. Mas é demônio também. Num instante, o demônio tem uma expressão conhecida. Parece o governador Brandão. Sim. É ele. Com asas, semelhante a um vampiro, desce bem em frente ao prédio. Nesse momento, o grito de um mendigo ecoa na noite. Com uma faca, corre atrás de alguém. O homem que vê o demônio ou o vampiro acorda de um pesadelo. Passa a mão no rosto. Alívio. Olha a escuridão dentro do antigo Centro de Criatividade. Tenta dormir novamente.

Gritos de socorro ecoam em todos os cantos de São Luís. O Odylo pede socorro. A biblioteca fora destruída. O teatro não existe mais. O cine Praia Grande não existe mais. O lugar da nossa cultura, com os seus ricos cafés literários, não existe mais.

Felipe Camarão se lembra da cena de O Nome da Rosa, que o fez chorar – na sua rica juventude. Agora não pode chorar. Precisa ser forte. Dizer a todos que fiquem tranquilos. A Alexandria perdeu os livros, mas as paredes estão ainda de pé. A esperança pode renascer. Não. Lágrimas, agora não. Não fica bem. Lembra-se dos shows do Carnaval, o melhor de todos os tempos. Wesley Safadão, Gusttavo Lima... Quem mais? Cláudia Leitte, É o Tchan, Belo... Tem mais? Não lembra. Os vigias há muito deixaram de guardar o Odylo, por falta de pagamento. Tínhamos recursos, mas não pagamos. O que vou dizer à imprensa? Meu Deus? O que diria minha avó, Jean Camarão, se estivesse viva? Meu Deus! Dai-me me forças!

A noite cai em São Luís... Um casal de turistas passa na porta do antigo Centro de Criatividade... Olha o prédio. Olha para cima. Nem uma estrela no céu! Tudo nebuloso. Tentam (os dois) ver se há alguma coisa dentro do antigo solar. Escuridão total. Parecem dois seres caminhando por uma narrativa de Noite na Taverna. Ele diz a sua esposa: “Aí deve ter muita assombração!”



Fonte: Crônica

Deixe seu comentário aqui

Verificação de segurança

Comentários


Nenhum comentário foi encontrado, seja o primeiro a comentar!