POR WYBSON CARVALHO
As manifestações culturais populares têm esse caráter de ambigüidade entre o mal e o bem, a vida e a morte, que transborda na nossa cotidianidade todos os limites dos exageros das emoções e desejos da aproximação da realidade com a ficção criada pela sociedade humana. São manifestações que estão associadas a essas dualidades do mundo real da vida e o mundo ficcional do imaginário simbólico, do disforme da natureza e as experiências oníricas que sempre fizeram parte das nossas histórias de encantados no mundo da infância e que chegam à vida adulta mais próximas da racionalidade. É a hibridização de tudo isso que dá a tônica à cultura popular no mundo globalizado pelos meios de comunicação e pelos novos interesses de consumo de bens culturais.
O cordel por um longo tempo foi um importante meio de comunicação popular e usado para atingir o maior número possível de pessoas. Sempre houve uma mediação entre a produção cultural popular e as classes hegemônicas. Por outro lado, mudaram as negociações, os interesses, as formas, a velocidade do tempo e a dimensão de alcance desses bens culturais nos nossos dias.
Atualmente, temos uma mediação midiática fortemente influenciada pela televisão que se apropria das manifestações das culturas populares para os seus mais diversos interesses.
Não trago novidades, apenas algumas constatações para mostrar que a espetacularização das culturas populares não é uma coisa tão nova como se pensa, a mudança é nos métodos de produção, na velocidade da distribuição e no mercado de consumo desses bens culturais. Hoje em dia a classe média consome mais os produtos da cultura popular, a exemplo dos artefatos de decoração, nas festas populares, no consumo de produtos naturais e a crescente preferência por restaurantes de comidas regionais.
As empresas que promovem entretenimento e turismo têm suas localizações cada vez mais abstratas, ou seja, são empresas que já não pertencem a um território. Mas, os produtores culturais populares locais continuam enraizados no seu chão, no seu lugar, porém sem perder de vista o mundo de fora, visibilizado pela mídia. Ao mercado e à sociedade global não interessa o universalismo simbólico das culturas, até porque os conceitos, como se pensava nos anos 1960, de ``aldeia global'' ou de instauração de um ``McMundo'' não vingaram, nem mesmo com a globalização cultural e, os acontecimentos culturais são cada vez mais regionalizados com a globalização.
Lia de Itamaracá, cantora pernambucana de temas folclóricos, só aos 59 anos ganha o seu espaço na mídia nacional e internacional depois que é descoberta pelos produtores de bens culturais do mercado global. É um exemplo claro dessa mediação cultural entre o popular e os processos midiáticos.
As festas populares na região nordestina transformam-se para atender às demandas de mercado de consumo no mundo globalizado. Para atender a esse segmento de mercado cultural da sociedade midiática, são modificados os processos de apropriação e incorporação dos novos valores estéticos populares. Nesse sentido, a cultura popular, o folclore não são coisas engessadas, fechadas para serem simplesmente preservadas ou resgatadas. É um processo cultural em movimento no âmbito do campo social dos nordestinos, presente na vida cotidiana e que se entrelaça com os produtos culturais globais ofertados pelos grandes grupos econômicos por via das novas tecnologias da informação e da comunicação, notadamente da televisão. A cultura popular está sempre aberta a setores de produção cultural, a outros significados, a novas práticas sociais, aos novos sistemas de comunicação. Estamos vivendo no mundo em que quase tudo se torna espetáculo. Vivemos numa sociedade midiatizada onde as culturas populares são atrativos para o exibicionismo televisivo, onde quase todos os acontecimentos da vida cotidiana poderão transformar-se em espetáculos midiáticos, desde um acidente trágico -- mesmo que só envolva pessoas anônimas das quais vai depender a sua proporcionalidade -- a um casamento, ou funeral de celebridades e, sem dúvida alguma, das festas populares. Quero dizer com isso que a sociedade humana no mundo globalizado é inserida nos processos midiáticos. São momentos de grandes celebrações desde as campanhas eleitorais, competições desportivas, concentrações religiosas, ritos de passagem (quando envolvem celebridades) ou acontecimentos que estão fora do ordinário da vida cotidiana e entre esses acontecimentos estão as festas profanas e religiosas.
Exemplos desses novos procedimentos são as ressignificações das festas populares, do artesanato, da culinária, das cantorias de violas, do cordel e de tantas outras manifestações da cultura tradicional nordestina proporcionadas pelas novas lógicas de consumo do local, alavancadas pela televisão. Ora, se por um lado são hegemônicos os interesses de persuasão cultural dos megagrupos econômicos, por outro os mediadores ativistas culturais locais criam estratégias próprias de permanência nos seus pedaços e, como enfrentamento do novo contexto, descobrem novas formas de comunicação para divulgar os seus produtos culturais. Nos anos de 1940 Luiz Gonzaga, o ``Rei do Baião'', reinventou a música nordestina para fazer sucesso no rádio, na indústria fonográfica, no cinema e, posteriormente, se consagrou na televisão sendo reconhecido pela intelectualidade brasileira como um dos grandes inovadores da música nordestina (na transição do rural para o urbano). Luiz Gonzaga na sua genialidade dá sentido rurbano2 ao forró e ao baião. Portanto, não é tão nova a estratégia de apropriação das tecnologias de comunicação pelos produtores de cultura popular para recolocar o local no mercado global.
Mas é preciso se chamar a atenção para as mudanças por que passam atualmente essas festas populares (Natal, Carnaval, Semana Santa, São João, vaquejada, etc), que eram realizadas espontaneamente pelos grupos locais e agora são organizadas com a participação de grandes grupos multimidiáticos, empresas de bebidas e comidas, promotores culturais e empresas de turismo. É como se existissem duas festas, uma dentro da outra, ou seja, a festa central institucionalizada, de interesse econômico dos megagrupos empresariais, políticos e até religiosos, e a outra periférica, que continua sendo organizada através da mobilização da comunidade, pelas fortes redes sociais de comunicação, com a finalidade alegórica de rompimento com o cotidiano e com o mundo normativo estabelecido. Ou seja, a celebração para ``quebrar a rotina'', em tempo de festa nos diferentes instantes da comunidade e outra no tempo do espetáculo organizado para consumo global.
É nesse Nordeste das narrativas orais da seca, da morte ``matada'' pela fome, do “cabra da peste'', das astúcias dos ``João Grilo'' que operam os imaginários populares do sertão. A cotidianidade das pequenas cidades interioranas do Nordeste, quando adaptada para as narrativas ficcionais do cinema, da televisão, do teatro ou da literatura aproxima o Brasil urbano do Brasil rural, melhor dizendo, a convivência de um Brasil rurbano.
São esses gêneros narrativos da oralidade popular projetados pelas manifestações folclóricas (os mitos messiânicos característicos das comunidades rurais, as conversas entre compadres e vizinhos, as brigas de amor e ódio, os ``fuxicos'' que circulam nas redes de comunicação cotidiana entre os parentes e amigos etc) que, ao longo do tempo, continuam enraizados na oralidade, ``correndo de boca em boca'' do povo do semi-árido nordestino e apropriados por escritores, autores e diretores, que reinventam suas histórias em livros, teatro, contos, filmes, vídeos e telenovelas. São esses processos de apropriação do imaginário sociocultural brasileiro, nordestino/sertanejo que a televisão continua reproduzindo para o mundo globalizado e que dão bons resultados de audiência. O imaginário cultural rural do Nordeste é um ``prato feito'' para a teledramaturgia brasileira, por ser uma cultura polissêmica, multicolorida, carregada de crenças, superstições, do sagrado e do profano, do ecológico e do alegórico que contrasta, quase sempre, com a miséria e o analfabetismo dos seus protagonistas.
*Poeta e jornalista, membro da Academia Caxiense de Letras (ACL)
Fonte: Opinião
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